Sunday, November 09, 2008

"Profissão, Gestor de Espaço Automóvel

Sem grandes entretenimentos, e com necessidade de consultar bastante material em CD que trouxe para Angola, encontro uma série de escritos não publicados.
Decido publicá-los agora, enquanto aguardo inspiração para novas escritas cá...

Um abraço...

Uma short-story (Lisboa, 2005)

"Profissão, Gestor de Espaço Automóvel


Baloiçava o braço e repetia alto, com voz rígida e segura, “Eu sou profissional, va’mo lá q’ isto é sempre a andar! Sempre!”, todos os dias que eu lá passava.
Felizmente, não tenho carro, não tenho vontade de ter e adoro a chance de viajar ao “centro da terra”, cada vez que entro no metro: aquela escuridão, a tristeza das caras, as paredes sujas da combustão das “naves”, a rapidez com que as pessoas entram para a “nave”, enfim, adorável rotina de um solicitador novato a reviver Júlio Verne.
Um dia desta semana, trouxe o carro da Marina – a minha mais-que-tudo– nem sei bem porquê e tive de passar pela febre da arrumação: o parque é caro, aqui é faixa amarela, ali é garagem, acolá é privativo, até que, vem o arrumador na minha direcção e, educadamente digo “Você é o arrumador daqui?” – má ideia. As pessoas constroem nas suas cabeças as generalizações que lhes convem e, neste caso, este arrumador correspondia ao meu estereótipo, mas não gostou da terminologia e, com um ar pouco afável e imperioso disparou “Sou Gestor do Espaço Automóvel”, realmente só lhe faltava um fato e pouco mais para Gestor, porque a atitude estava lá toda, “Desculpe”, disse eu, tentando ganhar a causa, “Precisava de um lugar e pensei...”, “Sabe como diz o provérbio?”, colocou um ar sarcástico,“A pensar morreu um burro”. Sou pessoa calma, demais até e agora compreendia os desacatos que ocorriam, ocasionalmente, entre os “Gestores do Espaço Automóvel” e os donos das viaturas, “Já fui Gestor de outras coisas, mas isso agora não interessa nada, como diz a outra” – até tinha receio de interromper a divagação; Disse-lhe com ar indagador “Ai é? E então como é que...?”, “Pois, já se sabe, a vida dá muitas voltas; Aqui, perde-se um pouco da dignidade, mas trabalha-se honestamente, sem jogos sujos e ganha-se mais do que nos edifícios bonitos, com elevador e escritórios modernos”, olhou para cima enquanto respirou bem fundo.
Tinha acordado num dia reflexivo, predisposto para uma experiência surreal e, por isso, fiquei cativo naquele olhar por três segundos – que na correria urbana é uma eternidade.
Apontou-me um lugar e estacionei, azelha como quem já não conduz há meses. Fez sinais e gritou instruções e depois abandonou-me para ir atender outro cliente.
Ao passar, vi que estava a corrigir uma senhora que o tinha chamado de arrumador. Dei-lhe uma moeda de um euro, disse obrigada e desejei bom trabalho, “Vê, um euro em – olha para o relógio– 3,7 minutos, significa cerca de–pausa de dois segundos– 16 euros à hora, 112 euros ao fim de 7 horas e pouco mais de –pausa de três segundos– cem contos por semana!”, fiquei à espera da conta mensal, de boca semi aberta e expressão suspensa, “Que foi homem?Já ‘tá! Adeusinho.”, “Errr...pensei que ia acabar a conta e dar o valor mensal!”, disparou uma gargalhada com pitada de sarcasmo e paternalismo, “Isto aqui é como nos States...”, franzi o sobrolho e fiquei mais um vez à espera da sua explicação, “Faz-se a conta à semana”." (Escrito em lisboa, 2005)

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