Sunday, November 09, 2008

A curiosidade não matou a gata

Mais uma short-story, mais arrumações...

A curiosidade não matou a gata (Lisboa, 2005)

"Truz, truz, truz”, seguido de “Miau, miau, miau” foram as últimas palavras que ouvi naquela noite. A seguir, ouvi o ranger da porta e uns gemidos estranhos. Confesso que sou pessoa não muito curiosa, ou se calhar não era e com este episódio passei a ser, mas aquele bater na porta às 4h30 da manhã pareceu-me suspeito.
Talvez seja o meu instinto de detective estivesse adormecido e tivesse despertado agora, não sei bem porquê.
O gato, ou gata, da vizinha de cima – a Madalena – raramente miava e, ficou desde logo combinado nas reuniões do condomínio que só se podia ter animais que não fizessem barulho, pois as paredes tinham má insonorização e estavam lá basicamente para não nos vermos uns aos outros a fazer coisas íntimas.
Os vizinhos desde prédio não têm intimidades: Três andares e cinco apartamentos (o rés do chão é só um), todos sabem os nomes uns dos outros e algumas profissões, e encontramo-nos todos uma vez por mês – contra a vontade de todos – para as tais reuniões.
Naquela noite fiquei deveras intrigada com aquele bater à porta: Há dias em que não
queremos saber de nada do que está à nossa volta e há dias que subordinaríamos tudo e todos para saber uma estupidez que nos mói a tola.
Vesti um robe e sorrateira comecei a subir as escadas para o 2.º esquerdo - eu moro no 1.º esquerdo. Passado dois ou 3 degraus tentei pensar como um detective ou um investigador qualquer, Se alguém me apanha tenho de ter uma explicação para dar de imediato senão ficarei mal!, e assim, voltei para casa e sentei-me no sofá em busca da explicação fidedigna, Café, açúcar, sal, está fora de questão pois não é algo que se precise às quatro da manhã; Dizer que ouvi um barulho estranho, sim, é isso, pensei, demonstra preocupação, vou franzindo o olhar e dirigindo o ouvido para a porta e se desconfiar que alguém está a dirigir-se à porta toco logo à campainha e pergunto, Está tudo bem? Desculpe Madalena, mas fiquei preocupada, e pronto, parece ser uma boa frase.
De novo, manhosa, subi até à porta dela e ouvi os gemidos, cada vez mais estranhos, a gata miava também de vez em quando o que mostrava que algo não era normal. Estava já o meu dedo na campaínha quando ouvi a Madalena dizer Força Agora, Força!, e regelei. Desci escada a escada com consciência plena que estava a invadir seriamente a privacidade de alguém. Corri para o sofã, encolhi-me e aconcheguei-me no robe e tentei dormir. Como fui capaz?, pensava.
De manhã, o dia começou chuvoso e os gemidos já não existiam. Era Domingo e a curiosidade devorava-me, consumia-me por dentro como um vício. Controlei-me, ainda eram onze horas da manhã e talvez ninguém gostasse de ser incomodado tão cedo. Chegaram umas pessoas barulhentas a comentar coisas alegremente, entre risinhos, subiram até ao 2.º esquerdo e “Bling, blong”, “Onde estão eles, Madalena? Oh, que giros, meu deus, que lindos! Eu quero um!”. Onde estão eles? Quero um?, não percebia nada. Outras pessoas felizes chegaram, “Então, aqui há gatos...!?”
Tinha-me deixado levar por deduções erradas: A gata tinha dado à luz. Enrolei-me de novo no meu robe a ver a chuva e a tentar voltar à pessoa não curiosa que era dantes.

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