Wednesday, November 26, 2008

A África prometida: Tombwa (Namibe)















22, 23, 24 e 25 de Novembro

Finalmente, um fim-de-semana passado fora de casa! A África prometida. Anteontem, Sábado, partimos em direcção ao Namibe.
Ao fim de uma hora e trinta minutos, chegamos. A viagem do Lubango para o Namibe implica passar na serra da Leba e fazer as torneadas estradas cuja foto mostrei aqui no blog, há algumas semanas. Depois da serra da Leba, podemos contar com grandes e longas rectas de estrada de boa qualidade, que no entanto, devem ser atravessadas durante o dia, pois não existe iluminação, o que poderá trazer graves problemas, principalmente devido a animais que por vezes atravessam a estrada (não há rails) ou camiões em apuros (pois não há guias ou espaço de paragem em paralelo à via, que só tem uma faixa).
Durante a noite, após petiscos, fomos caminhar pela beira-mar, na marginal do Namibe. Que praia terá sido no passado! As palmeiras, o calçadão e algumas construções do tempo colonial indiciam que se trataria de um pequeno paraíso. Casas de banho publicas na praia, bancos para relaxar em frente ao mar, adereços encurvados de cimento colorido ao longo do calçadão, etc.
A caminhada a pé até ao porto marítimo serviu para conversas nostálgicas e para perceber a riqueza das histórias de vida de muitas pessoas que nasceram nos PALOP’s e que depois viveram e trabalharam em Portugal, tendo mais tarde regressado, no caso, a Angola. Pessoas que viveram numa época conturbada mas rica, cheia de ideias e ideiais, políticos e cívicos.
Depois de uma noite de sono curto, às 07h00 e pico da manhã o grupo preparava-se para partir. Após o café da praxe, navegamos em direcção à zona (e vila, provavelmente) e Tombwa.
De caminho, paramos apenas para fotografar as Velvichias, plantas única no mundo (ver foto). Conseguem sobreviver neste pequeno deserto…

Tombwa é um local relativamente pequeno, essencialmente caracterizado pela grande quantidade de indústria piscatória que existiu (pelo forte cheiro a peixa, talvez exista ainda algo, mas muito pouco). A população tomou as instalações das indústrias abandonadas para suas casas e, ao que parecem, vivem e sobrevivem à custa do peixe.
Numa tentativa de ir visitar um braço de areia (pequena restinga do Tombwa), acabamos por enterrar a carrinha e ter de esvaziar os pneus um pouco de forma a poder sair (truque que desconhecia, claro!).

As crianças tentam apanhar boleia da carrinha (ver Foto), cercam-nos, sorridentes pela (provavelmente) grande atracção do dia…estrangeiros atolados! Havia comprado um pacote de bolachas para entreter durante a viagem e, ao ver em particular um criança de 5 ou 6 anos com outra às costas (do mesmo jeito maternal que as mães carregam aqui os filhos, usando um pano [provavelmente a Samakaka, pano com estampado típico da Huíla] que atravessa o corpo debaixo do peito e faz com que a criança vá sentada encostada às costas da mãe), decidi que ia dar as bolachas…
Alguém perguntou:
- Então, de quem é esse bebé que trazes? Não és pequenina para carregar um bebé sozinha nas costas? – a criança, abanou as missangas do cabelo, afirmando que não – Então, é teu irmãozinho? - Sim, respondeu, com o dedo na boca.Perguntei ao grupo de 8 talvez nove crianças, -Quereis Bolachas?, -Sim, responderam em grupo de imediato. Comecei a distribuir bolachas, enquanto as contava e todas as crianças começaram a contar comigo, numa só voz: -Uma, duas, três…Muito bem, pensei e disse, pensei também que se tratava de um momento educativo que um psicólogo não pode desperdiçar! Contamos todos até dez e depois o grupo começou a engasgar…Ocasionalmente um ou outro lá sabia o doze e o treze, e entretanto, lá para o 15, acabaram as bolachas. Ainda deu uma segunda rodada para alguns, outros tentara enganar-me dizendo que ainda não tinham bolacha, - E estas migalhas na tua mão são de quê? - disse eu, com jeito malandro e elas faziam um sorrisinho encabulado e continuavam a estender a mão…
Partimos para conhecer mais detalhes. A cidade esteve semi-vazia até que de repente, talvez por volta das 11h todos começaram a aparecer na rua, uns com as cadeiras às costas (para ir para algum sitio onde não havia cadeiras, aliás, pratica comum nas escolas por aqui, pois as crianças levam as suas cadeiras!), outros muito bem vestidos, de vestidos e fatos, com folhos e cores berrantes, uns em grupo outros sozinhos, todos a dirigirem-se para algum lado, porém todos em diferentes direcções.
Era Domingo. Era dia de missa. Numa cidade tão pequena existem pelo menos 5 tipos de igrejas diferentes: A Igreja Pentecostal e/ou Evangélica (não me recordo bem), a Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Católica, etc. Lembro-me de alguém no carro comentar algo que me ficou marcado mas cujas palavras não lembro. O conteúdo reportava a algo do género…”numa cidade de tal forma isolada e pobre, realmente só a busca espiritual os pode ajudar ”
Depois de reencher os pneus com alguma dificuldade numa bomba de gasolina (aliás diga-se, bomba de gasóleo, pois esta só vendia gasóleo e a outra, do outro lado da cidade, só vendia gasolina!), partimos determinados a encontrar um local “típico” para petiscar.
Na bomba observei este jogo de damas improvisado (Ver foto), o que me lembrou da primeira vez que aprendi a jogar damas com o meu avô. Como não tínhamos tabuleiro, o meu avô rapidamente resolveu o assunto: a mim, criança, talvez nos seus 10 anos, colocou-me a pintar os quadrados numa folha de cartão, enquanto ele, foi buscar umas rolhas que cortou com cuidado às fatias, tendo pintado numas uma cruz e noutras nada…e já tínhamos as pretas e as brancas!

Reparem que, em muitos outros sítios do mundo (nomeadamente Portugal), isto não acontece. Penso que já aconteceu. Hoje, talvez os gasolineiros ouçam o relato de futebol ou tenham TV, mas não jogam damas. E logo damas.
O local típico foi o “Bar Virei”. Um amontoado de história de Angola, com particular atenção para algumas tribos da Huíla. Mesas numeradas, bebidas e dinheiro (notas) de todo o mundo, máquinas fotográficas dos anos 60 ou 70, Velvichias secas, poemas esculpidos em pedaços de madeira, estatuetas diversas, quadros pintados a carvão com retratos tribais, cadeiras e bancos esculpidos à mão (cada um personalizado com o seu animal ou desenho tribal) e, só no fim, reparo na palavra PUB por cima do arco à entrada, o que me indicia influência britânica ou sul-africana.
Entre a parafernália, destaco esta foto e reflexão: “E afastou-se para o deserto em busca da verdade”.

Os petiscos foram: moelas, caranguejos e cherne grelhado. Por volta das duas horas da tarde saímos em busca da tão almejada praia, pelo menos por mim. O ar da maresia já me havia acalmado na caminhada da noite anterior e fez-me esquecer um pouco as saudades e as preocupações profissionais e relacionais, implícitas no arrancar de um projecto novo num país a 8 mil quilómetros do meu…
Mas eu, que me julgavam por vezes tão cosmopolita, ainda sou a poveirinha que nasceu ao pé do mar e desejava brutalmente sentir o meu corpo ser abraçado por um oceano. Um oceano qualquer, de preferência mais quente que o da minha terra.
Foi no caminho de volta que vimos o sinal “Flamingo Lodge, a 23km”. Ficamos a pensar se seria mesmo a 23 ou a 2,3 km, porém cedo percebemos que iríamos fazer os vinte e muitos, numa picada de nos fazer saltar do banco. Por entre velvichias e planaltos que pareciam saídos de um western, seguimos parcialmente por um leito de um rio seco.
Em vinte e cinco minutos conseguimos entrever, ao longe uma pequena cabana no alto de um planalto e rimos. Mas assim que chegamos, respiramos fundo. Um arco recebia-nos à entrada e subimos dezenas de escadas para encontrar uma cabana de madeira, perfeitamente equipada, com uma agradável cozinha à vista, toalhas estampadas, esplanada ao sol e no interior, um envidraçado cm vista para uma praia extensa e deserta. O bar do Flamingo Lodge parecia saído de uma série americana da Califórnia, Malibu ou Hawai, mas o areal deserto e amplo era a África prometida.
Depois de um café saboroso e de uma pequena conversa com a gerente sul-africana (em inglês um pouco enferrujado), fomos até à praia. Eram três da tarde, mas mesmo assim, barrei-me com protector. Tentei encontrar um diamante perdido entre as rochas, mas trouxe apenas pedras. Ainda não foi desta que encontrei o diamante. Finalmente, consegui entrar na água depois daquele impacto e receio inicial. Era morna. O mar estava revolto, eu não entrava num oceano há pelo menos 3 meses, e estava a entrar pela primeira vez em águas africanas daí os receios. Deixei-me envolver nas ondas. Sentia finalmente as narinas a serem hidratadas (depois de muita secura nas primeiras semanas no Lubango), o sal a escorregar pela boca, os músculos dos ombros a descaírem em direcção ao chão. Era como se estivesse em casa. Com melhoria substancial da temperatura.

Enquanto voltávamos o romance que a minha cabeça tem vindo a escrever continuava. Já há semanas que anseio voltar à escrita, mas parece que a vida e o universo não o querem de alguma forma. Deixei então, que pelo menos na minha cabeça, esse romance se fosse escrevendo, entre as paisagens e escarpas imensas, o ser catapultada dentro do carro, o vento a levar o cabelo para toda a parte (foi um feliz dia sem ar condicionado!), o pó da areia fina e do salitre por toda a cabine.


Já na Tundavala foi possível ficar sem palavras, respirar profundamente e sentir um vazio que dava vontade de morrer. Como se nesta vida, não fosse possível sentirmo-nos assim de novo e como se não valesse a pena correr para viver, ou viver a correr. Mas foi nestas montanhas, entre o Tombwa e o Namibe, em que perdemos noção da distância a que estamos das montanhas pastel, em que os olhos parecem iludir-nos que as palavras começaram a jorrar para o meu romance. Passado uns minutos pensei na tese por terminar e acabou o transe em que estava, talvez o nirvana…


Aqui seguem as restantes fotos...
Beijos e muitos abraços a todos!

Sunday, November 09, 2008

O Saiote

É domingo e chove aqui, no Lubango. Está frio e nublado. Só temos uma solução: trabalhar. Sem qualquer entretenimento, resta conversar com os colegas e agarrarmo-nos aos portáteis...

Uma ultima short-story, também escrita em Lisboa, em 2005.

O saiote

Aos cinco anos gostava de ver a minha avó arranjar-se. Puxava bruscamente pelas roupas até se encaixarem nas suas formas redondas que herdei. Havia duas peças que me fascinavam: A “combinação” e o “saiote” - com passar dos anos e modas deixou de se usar a primeira. Minha mãe era demasiado magra e a roupa deslizava pelo corpo acima ou abaixo sem roçadura, daí que gostasse mais de observar a minha avó.
O encantamento do saiote ficou guardado mas presente ao destes anos, pois trabalhando em prêt-à-porter, esta era uma peça que vendia bem, principalmente para senhoras de 6 ou 7 décadas. Infelizmente nunca usei um, mas fascinavam-me as mil rendas, as cores suaves e o nylon (que em catraia chamava seda) e a volúpia que me parecia implícita naquele acto tão feminino de vestir o saiote, “enfiá-lo”, como se dizia.
Com a faculdade, o casamento e a carreira fui esquecendo esse pormenor meu, esse fetiche, essa curiosidade.
Um dia, pediram-me que escrevesse um conto “romântico”, disseram, o “Romeu e Julieta” das short-stories e, logo, achei que era demasiado sintética e pragmática para sobrevoar esse ceús românticos, onde deambulam as almas gémeas. Tentei, mas nada. Se parecia sair algo era seco, desprovido de emoção, não eram mais que descrições de actos. Sentia a ligeira sensação de derrota no corpo cozido no vapor de Agosto. Numa janela de 2.º andar de Lisboa tentei captar a paisagem para cenário do conto. Todavia, a caneta emperrava após um par de frases. Foi então que, ao fim de décadas, pareceu-me ver o saiote de uma senhora a dar a dar e a deixar-se entrever pela racha da saia castanha escura.
Saí sem pensar. Entrei no metro e segui para o Chiado onde sabia que encontraria lojas do hoje chamado “comércio tradicional”. Não sei bem para que queria o saiote: uso pouquíssimas saias, muitas com forro e adoro calças. Os saiotes devem ter sido pensados para peças feitas na costureira que, sem forro, seriam por certo incómodas.
Finalmente, numa loja com cheiro a mofo e letras douradas, permaneço sob o olhar admiradíssimo de um vendedor na ternura dos quarenta. Deseja rosa-bebé, azul-bébé ou Branco? Porque não há branco bebé?, pensei, Sim, pode ser o branco, por favor. Ah, Tamanho M. Sentia-me emocionada como se, apesar dos meus quase trinta anos, só agora me sentisse verdadeiramente mulher. Tenho o 38, o 40 e o 42, menina...isso de L’s e M’s não é p’ros saiotes. O 38 serve. Vi-o tirar aquela maravilha de dentro da caixa comprida acinzentada com letras caligráficas; estendeu-mo no balcão de madeira –picada pelo bicho- e perguntou-me se queria experimentar. Olhei-o como se o visse com os olhos de 5 anos, a escalar o corpo curvado da mãe da minha mãe. Levo este, quanto é?, 7 euros. Vim contente como uma menina que cumpriu o recado que lhe foi pedido, sabendo que terá doces à espera.
Chegada a casa atirei tudo para a cama e tirei as calças. Ao espelho, repeti então o célebre gesto, empinando-me como uma avestruz. Relembrei as coxas à “moda antiga” –que agora as mulheres querem-se a direito – e compreendi a sensualidade do roliço cilíndrico. Vesti uma saia pela cabeça que deslizou pelo saiote e corri o fecho écler. Narcísica, olhei no fundo dos meus olhos e tirei a roupa para repetir o ritual. Em dez minutos tinha história de paixões, hotéis, traições e beijos ardentes.
Cada vez que “enfio” o saiote, a “seda” chama pela minha feminilidade, e esqueço as “derrotas” do dia-a-dia, as dietas, a celulite, as calorias, as olheiras e tudo o que nos faz sofrer neste século XXI e consigo, enfim, reviver a doce e franca sensação de ser mulher.

A curiosidade não matou a gata

Mais uma short-story, mais arrumações...

A curiosidade não matou a gata (Lisboa, 2005)

"Truz, truz, truz”, seguido de “Miau, miau, miau” foram as últimas palavras que ouvi naquela noite. A seguir, ouvi o ranger da porta e uns gemidos estranhos. Confesso que sou pessoa não muito curiosa, ou se calhar não era e com este episódio passei a ser, mas aquele bater na porta às 4h30 da manhã pareceu-me suspeito.
Talvez seja o meu instinto de detective estivesse adormecido e tivesse despertado agora, não sei bem porquê.
O gato, ou gata, da vizinha de cima – a Madalena – raramente miava e, ficou desde logo combinado nas reuniões do condomínio que só se podia ter animais que não fizessem barulho, pois as paredes tinham má insonorização e estavam lá basicamente para não nos vermos uns aos outros a fazer coisas íntimas.
Os vizinhos desde prédio não têm intimidades: Três andares e cinco apartamentos (o rés do chão é só um), todos sabem os nomes uns dos outros e algumas profissões, e encontramo-nos todos uma vez por mês – contra a vontade de todos – para as tais reuniões.
Naquela noite fiquei deveras intrigada com aquele bater à porta: Há dias em que não
queremos saber de nada do que está à nossa volta e há dias que subordinaríamos tudo e todos para saber uma estupidez que nos mói a tola.
Vesti um robe e sorrateira comecei a subir as escadas para o 2.º esquerdo - eu moro no 1.º esquerdo. Passado dois ou 3 degraus tentei pensar como um detective ou um investigador qualquer, Se alguém me apanha tenho de ter uma explicação para dar de imediato senão ficarei mal!, e assim, voltei para casa e sentei-me no sofá em busca da explicação fidedigna, Café, açúcar, sal, está fora de questão pois não é algo que se precise às quatro da manhã; Dizer que ouvi um barulho estranho, sim, é isso, pensei, demonstra preocupação, vou franzindo o olhar e dirigindo o ouvido para a porta e se desconfiar que alguém está a dirigir-se à porta toco logo à campainha e pergunto, Está tudo bem? Desculpe Madalena, mas fiquei preocupada, e pronto, parece ser uma boa frase.
De novo, manhosa, subi até à porta dela e ouvi os gemidos, cada vez mais estranhos, a gata miava também de vez em quando o que mostrava que algo não era normal. Estava já o meu dedo na campaínha quando ouvi a Madalena dizer Força Agora, Força!, e regelei. Desci escada a escada com consciência plena que estava a invadir seriamente a privacidade de alguém. Corri para o sofã, encolhi-me e aconcheguei-me no robe e tentei dormir. Como fui capaz?, pensava.
De manhã, o dia começou chuvoso e os gemidos já não existiam. Era Domingo e a curiosidade devorava-me, consumia-me por dentro como um vício. Controlei-me, ainda eram onze horas da manhã e talvez ninguém gostasse de ser incomodado tão cedo. Chegaram umas pessoas barulhentas a comentar coisas alegremente, entre risinhos, subiram até ao 2.º esquerdo e “Bling, blong”, “Onde estão eles, Madalena? Oh, que giros, meu deus, que lindos! Eu quero um!”. Onde estão eles? Quero um?, não percebia nada. Outras pessoas felizes chegaram, “Então, aqui há gatos...!?”
Tinha-me deixado levar por deduções erradas: A gata tinha dado à luz. Enrolei-me de novo no meu robe a ver a chuva e a tentar voltar à pessoa não curiosa que era dantes.

"Profissão, Gestor de Espaço Automóvel

Sem grandes entretenimentos, e com necessidade de consultar bastante material em CD que trouxe para Angola, encontro uma série de escritos não publicados.
Decido publicá-los agora, enquanto aguardo inspiração para novas escritas cá...

Um abraço...

Uma short-story (Lisboa, 2005)

"Profissão, Gestor de Espaço Automóvel


Baloiçava o braço e repetia alto, com voz rígida e segura, “Eu sou profissional, va’mo lá q’ isto é sempre a andar! Sempre!”, todos os dias que eu lá passava.
Felizmente, não tenho carro, não tenho vontade de ter e adoro a chance de viajar ao “centro da terra”, cada vez que entro no metro: aquela escuridão, a tristeza das caras, as paredes sujas da combustão das “naves”, a rapidez com que as pessoas entram para a “nave”, enfim, adorável rotina de um solicitador novato a reviver Júlio Verne.
Um dia desta semana, trouxe o carro da Marina – a minha mais-que-tudo– nem sei bem porquê e tive de passar pela febre da arrumação: o parque é caro, aqui é faixa amarela, ali é garagem, acolá é privativo, até que, vem o arrumador na minha direcção e, educadamente digo “Você é o arrumador daqui?” – má ideia. As pessoas constroem nas suas cabeças as generalizações que lhes convem e, neste caso, este arrumador correspondia ao meu estereótipo, mas não gostou da terminologia e, com um ar pouco afável e imperioso disparou “Sou Gestor do Espaço Automóvel”, realmente só lhe faltava um fato e pouco mais para Gestor, porque a atitude estava lá toda, “Desculpe”, disse eu, tentando ganhar a causa, “Precisava de um lugar e pensei...”, “Sabe como diz o provérbio?”, colocou um ar sarcástico,“A pensar morreu um burro”. Sou pessoa calma, demais até e agora compreendia os desacatos que ocorriam, ocasionalmente, entre os “Gestores do Espaço Automóvel” e os donos das viaturas, “Já fui Gestor de outras coisas, mas isso agora não interessa nada, como diz a outra” – até tinha receio de interromper a divagação; Disse-lhe com ar indagador “Ai é? E então como é que...?”, “Pois, já se sabe, a vida dá muitas voltas; Aqui, perde-se um pouco da dignidade, mas trabalha-se honestamente, sem jogos sujos e ganha-se mais do que nos edifícios bonitos, com elevador e escritórios modernos”, olhou para cima enquanto respirou bem fundo.
Tinha acordado num dia reflexivo, predisposto para uma experiência surreal e, por isso, fiquei cativo naquele olhar por três segundos – que na correria urbana é uma eternidade.
Apontou-me um lugar e estacionei, azelha como quem já não conduz há meses. Fez sinais e gritou instruções e depois abandonou-me para ir atender outro cliente.
Ao passar, vi que estava a corrigir uma senhora que o tinha chamado de arrumador. Dei-lhe uma moeda de um euro, disse obrigada e desejei bom trabalho, “Vê, um euro em – olha para o relógio– 3,7 minutos, significa cerca de–pausa de dois segundos– 16 euros à hora, 112 euros ao fim de 7 horas e pouco mais de –pausa de três segundos– cem contos por semana!”, fiquei à espera da conta mensal, de boca semi aberta e expressão suspensa, “Que foi homem?Já ‘tá! Adeusinho.”, “Errr...pensei que ia acabar a conta e dar o valor mensal!”, disparou uma gargalhada com pitada de sarcasmo e paternalismo, “Isto aqui é como nos States...”, franzi o sobrolho e fiquei mais um vez à espera da sua explicação, “Faz-se a conta à semana”." (Escrito em lisboa, 2005)

Thursday, November 06, 2008

Chouriço com morangos



Nesta escassez de NET em Angola, todos os momentos são preciosos...aproveito estes minutitos de net para colar alguns posts que tenho escrito em Word...Foram escritos em dias diferentes, mas isso agora não interessa nada! O que conta é mesmo a reflexão, né?!

Chouriço com morangos
A caminho de uma noite no Falcons Bar (Clube Motard) dizem-me
“quem vem ao Lubango tem de comer chouriço e morango”
Eu entendi chouriço com morangos, o que com certeza não seria mau de todo.
O chouriço era realmente bom, mas ainda não provei morangos que honrem a fama que Lubango tem…uma grande ironia para a ex-semi-vegetariana, que para já tem de comer aquilo que aparece e não aquilo que apetece…
Aqui, “tudo se come” dizem-me, depende, no entanto, das épocas. Nunca percebi grande coisa de cultivos, mas parece que os terrenos são um fenómeno para os meus ingénuos ouvidos. Quase qualquer coisa floresce e dá fruto, imensos animais se caçam e se comem e a quantidade de industrias e produtos fabricados noutros tempos é admirável.
Até agora provei alguns frutos daqui que nascem espontaneamente, os maboques, os luengos e as Nonchas.

De resto, tenho me empanturrado com feijão com óleo de palma.Penso mesmo estar viciada em oleo de palma...mesmo!

Hoje, dia 06 de Novembro, comi Peixe-burro, que estava uma delícia, temperado pela D.Martinha, a "governanta"! E aproveitei para saltear um feijão verde com algo, azeite, vinagre e farinha, numa farinheira à moda da minha futura sogra (Bjs para a Otília e Alfredo!)


A Seis de Novembro
Faz hoje 6 semanas que cheguei em Angola. A noção de tempo, como eu já tinha dito antes, é muito diferente. Talvez quando possuir a internet e a Tvcabo a minha construção da temporalidade mude, mas para já, tenho a sensação de que já estou cá há anos...
Saudades, daquelas radicais, não tenho muitas, são outros tempos, em que falo com família e amigos todas as semanas, mas fazem-me falta aquelas pequenas coisas, como um cafezinho com a mãe, uma noitada fora com os amigos de longa data, uma noite enrolada no sofá quando o vento e a chuva abanam as portadas e eu me enrolo na minha gata e ela ronrona encostada a mim (aqui fica uma foto da minha gata, agora que estou mais saudosista, dá-me para estas coisas! Esta é a Leia!)…


Faz-me falta um bom filme (Ou TV, é verdade há 1 mês e meio sem ver TV!), e uma chá verde bem quente com uma torradinha com manteiga, enquanto me agarro à minha manta favorita…
Cá em Lubango, a nossa casa é espectacular (vejam fotos em posts anteriores)! Quem me dera (e a muitos de vós) ter uma casa assim em Portugal, não? Ainda para mais temos uma governanta fantástica, a D. Martinha, que é a felicidade em pessoa, o sorriso constante, a disponibilidade total…a ironia é que agora, que podia não fazer nada, não consigo “mandar” e dá-me vontade de fazer coisas como lavar a louça, fazer chá, etc….

A Universidade
Quanto à Universidade, o trabalho tem sido duro para todos. Todos corremos contra o tempo para dar as matérias e fornecer textos de apoio, tentando adaptarmo-nos à cultura, à forma de ser académica de Angola (todos os países são ligeiramente diferentes na sua atitude académica, por opção ou por constrangimentos diversos) e ao cansaço dos estudantes, pois grande parte são trabalhadores estudantes.
Quando vim para cá, tinham-me dito que “Sá da Bandeira”, actual cidade de Lubango, tinha fama por ser a cidade do conhecimento e que, desde o tempo dos portugueses, que havia muita sede de informação – confirma-se. O Slogan da Cidade é mesmo “Cidade do Conhecimento”.
As pessoas trabalham, de dias e/ou à noite e frequentam as aulas à tarde ou à noite. Às vezes, se olharmos com atenção, vemos o cansaço num ou noutro olhar, mas não é ofensivo, como alguns professores pareciam pensar em Portugal (até de mim, que também fui algum tempo trabalhadora-estudante), é um grande elogio, a pessoa estar a fazer aquele esforço por estar ali! Por vezes um ou outro aluno, fecha os olhos, lentamente abrindo e fechando as pálpebras de cansaço. Tentamos dinamizar ao máximo as aulas, com trabalhos práticos, grupais ou individuais, mas parece soar-lhe estranhas estas práticas, todavia depois afirmam gostar muito.
Por outro lado, são pessoas com uma educação única: os estudantes do ensino superior não entravam na sala, enquanto eu (docente) não lhes desse sinal para entrar, quiseram colocar de imediato as regras “na mesa” acerca de atitudes diversas como telemóveis, bater à porta, intervalos, avaliação, etc.
Há pouco tempo decorreu o primeiro momento de avaliação (frequência) e todos pareciam altamente nervosos…

A ideia “europeia” de Angola
Existe uma ideia preconcebida de Angola, muito errada. Aqui há tudo. Pode ser caro, às vezes mais difícil de encontrar, mas há tudo. Há cafés, há restaurantes, há comida de todo o tipo, enfim…
Muitas estradas estão menos boas (o que implica andar de carrinhas todo-o-terreno) mas a estrada para o Kunene, por exemplo, parece ser uma estrada muito recente que todos dizem estar à altura de uma auto-estrada portuguesa (se calhar até melhor, porque já paguei muitas auto-estradas em Portugal, que depois tinham buracos e obras!)
Segundo alguns alunos meus também (depois de uma aula sobre preconceitos e estereótipos em Psicologia Social), existem muito mais ideias feitas sobre Angola como, por exemplo, que “é um país onde existem muitos conflitos”.
O povo quer é paz, isso é certo, e parece ser um povo pacífico. Penso que estão dispostos a tudo para não cair em guerra de novo. Raramente se ouve notícias de violência.
Agora que o mundo parece assistir a uma importante viragem (refiro-me a Obama nos US of A e a tudo o que isso/ele poderá implicar!!!), é realmente o momento de começar a erradicar muitos preconceitos em relação a muita coisa….