Friday, August 08, 2008

Angola

Caro Blog:

Vou para Angola.

Estarei perto de ti, mas de certa forma longe, mental e espiritualmente muito longe. Porque tu, meu blog, és português.
Depois de alguns anos a aceitar aqui que as propostas me surgiam, finalmente tomei toda a coragem em mim para agarrar aquilo que realmente queria.
Penso que, durante alguns meses da minha vida, deixei de ser quem realmente era.
Perdi um pouco de mim, e no entanto, consegui me redescobrir novamente, desta vez com mais clareza e lucidez.

Descobri que o ser humano não pode ter sido concebido para estar numa secretaria oito horas por dia, ou pelo menos alguns seres humanos.
Consegui acabar com a ilusão do emprego perfeito, Nine-to-five (que já ninguém tem este horário), numa secretaria só para mim, com um computador só para mim e com fotos dos/as entes queridos/as em cima da mesa, ou agora, nos tempos modernos, no screen-saver ou no wall-paper.
O emprego em que sonhava fazer coisas fantásticas e ter ideias e defender quem precisa de ser defendido. O emprego onde uma equipa trabalha para melhorar a sociedade, o mundo ou uma pequena comunidade, que de alguma forma, precisa de apoio.
Em vez disso dei por mim numa teia enorme de burocracia, aprovações de tudo por um cadeia hierárquica, que defende a imagem da organização a todo o custo, em vez dos interesses dos/das tais que necessitam de apoio.
Dei por mim entre palavras como picar o ponto, cumprir os objectivos, preencher os formulários, recolher assinaturas, aprovar isto, remeter aquilo para aquele e para o outro, verificar se não se está a pisar terrenos de trabalho pantanosos, atender chamadas e reencaminhar processos.
O cúmulo da “administratividade”, se é que a expressão existe.
A coluna toda torta ao fim do dia, dores intensas nos olhos de estar perante o PC todo o dia – estas novas profissões trarão problemas gravíssimos no futuro, estou certa disso. O contacto humano limitado e o envio de emails para pessoas que estão a 3 ou 4 metros de nós tornou-se prática comum e aceite por todos.
De vez em quando, alguém pensava como eu e vinha falar pessoalmente comigo. Ao chegar a casa, esgotada mentalmente pela quantidade de solicitações e variabilidade das mesmas, só conseguia embrutecer em frente da TV antes de ir para a cama, e comprar cada vez mais pré-preparados congelados, prontos a tombar para micro-ondas.
Ler começou a ficar fora de questão. Começou a não haver tempo para hobbies, nem vontade de estar com outras pessoas socialmente. Durante o fim-de-semana conseguia ser eu própria durante talvez umas 30 horas, dar aulas de yoga, fazer umas sessões de psicologia, sentir que realmente estava a fazer algo útil, estar com alguns amigos e amigas e cozinhar uma jantarada de caril de soja.
Para outra pessoa, este emprego seria um sonho. Para mim, roubou-me a alegria e a personalidade.
O comodismo e o salário fixo ao fim do mês, bem como (a ilusão) de vínculo estável, estavam a entranhar-se e a ganhar terreno. Discursos como “até não é mau de todo, tem muitas benesses” começaram a aparecer, alternados com momentos de elevado nervosismo e actividades de elevada responsabilidade não recompensadas.
Ainda assim, reconheço que se trata de uma instituição quase perfeita em muitos sentidos para quem tem a vocação para a tal administratividade: um convívio por ano para colaboradores/as, condições especiais para colónias de ferias para filhos/as, horas-extra, sistema de “banco de horas” acumulado que se traduzia em dias de férias ao fim do ano, sistema de carreira altamente estruturado (equiparado à “antiga” função pública), com mais um dia de férias ao fim de 10 anos de trabalho, ao perfazer 40 anos e coisas assim, que não cheguei a explorar devidamente, pois arrepiava-me só em pensar no excesso de estrutura em que o ser humano é obrigado a viver nos dias de hoje.
Um taylorismo socialmente aceite. Até os velhos contra-mestres e os agentes de tempos e métodos estão a voltar a aparecer, nestes tempos em formatos de softwares de controlo de atendimentos (quem atendeu, porquê, como, quanto tempo, etc…)…
Ao viver assim, as pessoas encontram formas de coping com este tipo de força estruturada, têm excessivas preocupações com o seu aspecto, as roupas e marcas que vestem, a cor da bolinha do brinco ser igual ao rebordo da calça, outras com excessiva televisão (em parte o meu caso também), excessivas revistas cor-de-rosa, afastamento da vida cultural e social do país, desvinculação face às decisões políticas, não participação activa na sociedade, não preocupação com o ser humano, com a filosofia e com o estado das coisas, e antes um conformismo assustador do tipo “é a vida, não podemos mudar o mundo”…
Foi há vários meses que decidi que não podia ficar ali muito tempo. Se o ser humano não pode mudar o mundo, ninguém mais pode.
Quando lá cheguei abriram-me portas, deixaram-me expandir, e em poucas semanas estava a questionar demais e fui chamada à terra. Tratava os assuntos com demasiada rapidez e com prazer e esse rapidez virou-se contra mim, pois, em pouco tempo, tudo começou a cair em mim.
Depois, dei por mim a entrar na “onda” de tentar despachar coisas para os outros, porque já não queria tanta coisa…(coisa que condenava no início)
Chegou a um ponto, que rir tornou-se difícil. Sentia os músculos da face a serem puxados para o chão. Mas isto sou eu. Continuo a dizer que talvez existam pessoas felizes com esta estrutura.
Lembro-me que na primeira semana de trabalho, o sentimento de que não pertencia ali apareceu logo, mas ignorei-o e treinei a minha mente para se adaptar.
Pessoas ficavam ofendidas com coisas que eu dizia sobre as “coisas”, por pensaram que estava a falar das “pessoas”. Cheguei a um pouco de fazer voto de silêncio, antes, durante e após o horário de trabalho. Sentia que tudo o que eu pudesse dizer estava a ser analisado, “cuscado”, compartimentado.
Parecia que muita gente à minha volta estava em busca de algo que fosse uma ofensa! Como dizem os brasileiros, pareciam que estavam “em busca de brigas”.
O Voto de silêncio fez-me bem, apesar de não o ter seguido com a disciplina yóguica que deveria.
A seguir ao voto de silêncio, comecei o voto de “não quero saber”, não quero saber quem é quem, o que é que disse, quem quer o lugar de quem, quem fez isto ou aquilo, quem foi amigo/a de quem e se zangou, etc. Fazia o meu trabalho e saía assim que podia. Não queria envolver o pouco que restava mim própria nesse novelo.
Entrava no meu carro e na minha casa e desligava tudo o que fosse réstias disso. Aí comecei a perceber que não era assim que via o trabalho. Nunca o vi assim. Sempre quis chegar a casa e ligar o PC e registar ideias novas, trabalhar as coisas de outra forma, acabar um relatório…isso não era problema, porque para mim trabalho era uma actividade, e o ser humano não consegue viver sem uma actividade, e era óptimo que essa actividade pagasse as contas.
Se um dia tiver de ter uma actividade apenas que pague as contas e onde não exerça a minha profissão, então prefiro algo simples, como montar um comércio, e não ter todas as responsabilidades em cima dos ombros, por algo que não se gosta.

Depois de horas fechada no mesmo sítio, comecei a compreender melhor a claustrofobia. Sempre que podia, ia respirar ar exterior. Sentava-me sozinha numa cantinho à beira de um lago a olhar para o céu e a perseguir uma nuvem com o olhar.
Só nesses pouco minutos por dia conseguia colocar-me num estado de ser do mundo, em vez do estado do ser de uma sala com 4 paredes. A mente abria-se e conseguia ir além das picuices que caracterizam o mundo chamado moderno.

E finalmente o universo abriu-me a porta para o mundo. No início pensei que Angola ou Espanha ou Brasil seriam iguais, mas lentamente o fascínio por África entranhou-se em mim. Como dizia Pessoa, primeiro estranha-se, depois entranha-se (apesar de nunca ter sentido isso com a coca-cola, felizmente).

África entranhou-se e despedi-me. Tive muito receios, mas mais uma vez esta organização, demonstrou um nível de excelência ao compreender a minha situação e ao permitir o desvincular sem problemas. Penso que a própria organização mais cedo ou mais tarde se aperceberia que o meu lugar não era ali, e é minha função perceber primeiro onde eu pertenço ou não pertenço.

(A ironia de tudo isto é que comecei o Mestrado com a minha teoria de que a não-pertença [o desemprego] seria pior do que a pertença fictícia [ex. recibos verdes] e que, o melhor mesmo era a pertença total [emprego total]; e hoje, olho para a minha vida e mesmo por comprovar, a minha teoria cai por terra à luz da minha experiência pessoal: era mais feliz com a liberdade dos recibos, do que com a pertença total; medos diferentes, sentimentos diferentes, mas hoje o receio que sentia de não arranjar trabalho no mês seguinte quando estava a recibos, não se parece nada com o desespero de estar em pertença total infeliz.)

Depois da desvinculação, exigências terríveis se seguiram, e foram 30 dias altamente esgotantes. Mas estava livre.

Aprendi que sei lidar melhor com a incerteza e o devir da vida e do trabalho, do que com a complexidade de uma organização burocrática, e com stress de trabalhar fechada, condicionada por todo o lado a realizar trabalhos administrativos (que outros acham que não o são).

Darei outras notícias, de Portugal ou de Angola

1 comment:

Unknown said...

Boa tarde, bom dia ou boa noite, conforme a hora a que ler este comment, Patricia.
Sou o João Ricardo que conheceu através do Eng.º Balau, no Porto, na FPCEUP, por ocasião de uma tertúlia sobre "Diferenças de" Género, no âmbito do Projecto EXITO, pelo Programa EQUAL, e para o qual fiz um pequeno estudo documental. Nada de mais.
Dei com o seu blog e tendo lido este seu post, só lhe posso dizer duas coisas: 1º, Parabéns! Por ter conseguido romper com o "sistema", com o que chama de "pertença total", "taylorismo aceite" ou outros termos; e, 2º, boa sorte. Toda a que precisar, seja em timings, oportunidades, contactos, o que for.
Infelizmente, também eu, de há uns meses para cá, reflito sobre estas nossas vidas atrás de secretárias, das 9h às 17h ou, no meu caso, das 9h às 18h, frente a pc's, frente a burocracias, frente a comportamentos pouco humanos, frente a quezílias de/por poder, frente a n.ºs e custos, perdendo a criatividade, enclausurando-nos a cada dia que passa, a embrutecer como diz, ou a emburrecer como eu digo, na comodidade que arranjamos, no comodismo que "incentivamos"... e para quê? Para ter um "income" "mínimo", "fixo", que nos garanta o pagamento das despesas, a maioria, no meu caso, para sobreviver, para pagar despesas de deslocação, etc.
Por ter quebrado com essa linha de vida, que se chega a parecer com o devir ou destino ou o que se lhe queira chamar, mas que por vezes temos lampejos de visão do que realmente é. E que não é muitas vezes o que queriamos/queremos, ou precisamos, para sermos nós, para podermos continuar a ser nós.
Como falei atrás, há uns meses que reflito nisso e ultimamente reapareceu-me a imagem (desejo?) de algo, diferente, "melhor", além fronteiras se fosse possível, bom, interessante, ...
Logo veremos se aparece, se encontro, se serei capaz, se será possível, dentro das 10001 circunstâncias que orbitam em torno de nós e nos afectam, condicionam, influenciam, positiva ou negativamente.
Tomarei a liberdade de a adicionar no hi5 e msn. Enteno se não vier a aceitar.
Qualquer questão, esteja à vontade para comunicar.
Continuação.

Beijinhos,
João Ricardo