Para muitas pessoas, um avô é um avô: o pai do pai ou da mãe. Para mim, o
meu avô Araújo é o pai que eu não tive, o único avô que algum dia tive e é a
minha figura de
vinculação masculina.
O meu avô Araújo é um contador de histórias. Seja qual for o tema, há
sempre uma história para contar. Dele herdei um pouco desta paixão por contar
histórias. A paixão por juntar letras e palavras, a pouco e pouco, e
contorcê-las até elas expressarem o que queremos, até elas terem a força e
densidade para penetrarem o outro. Esta é a forma principal de um escritor
expressar amor.
O meu avô Araújo é o único homem que algum dia conheci que está sempre
pronto a dançar. O Passo Doble, o Samba o uma pimbalhada qualquer. Um jeito
corporal muito próprio, de quem jinga a anca sem mexer o tronco superior. Um
sorriso a acompanhar toda a dança.
O meu avô chama-se Manuel Justo Araújo e, é uma das pessoas mais justas que
conheço. Um dos meus sonhos sempre foi ter o apelido JUSTO. Adoro esse apelido.
Adoro a cadência, a melodia e o profundo significado dessa palavra.
O meu avô tem um verde calma nos olhos mas quando se espelham em nós,
percebemos a energia que lá vai por dentro. Uma energia sempre pronta a fazer
tudo por todos.
O meu avô conta piadas sobre tudo. Ri de tudo. Vive com tudo.
Hoje sou quem sou, muito devido a ele nunca me ter tratado como “uma
menininha”. A oficina tinha sempre a porta aberta. Na sua geração, eram comuns
os preconceitos de género e às pessoas que, por perfeito acaso do destino,
nasciam com vaginas, eram vedadas muitas atividades.
A garagem, a oficina, o seu local de trabalho estiveram sempre de portas
abertas para mim. Eu entrava e fazia uma pergunta. E cedo soube o que era uma
grosa, um formão. Soube soldar. Soube o que era uma jante, um compressor, como
funciona a embraiagem ou tudo o mais que, como é óbvio tinha sempre uma breve
(ou não tão breve!) história por detrás.
Um dia trouxe um banco feito na escola, por mim. A disciplina era
“madeiras”. E disse-lhe que queria pintá-lo (infelizmente, não há milagres, e
como alguém havia decidido que o quarto ia ser cor de rosa, logicamente, o
banco teria de ser da mesma cor!). “OK, vamos pintar”. Não há dúvidas. Em pouco
tempo estávamos a pintar o banco.
Na altura, ele não tinha pistola (depois aprendi
a pintar à pistola) e pintamos à mão. “Tens de “puxar” a tinta, assim…vês…que é
para não ficar os risquinhos…isso…movimentos fundos…”. Esse banco está aqui ao
meu lado. À espera de tempo e espaço para usar o decapante e mudá-lo de cor.
O meu avô, um dia, trouxe umas aparelhagens novas para casa e disse para eu
não mexer. Só podia estar lá quando ele também estivesse. A coleção de Vinis
era demasiado tentadora. Observei atentamente tudo o que ele fazia e depois, à
sucapa, ia para lá. O Deck de cassetes, um amplificador topo de gama, 4 ou 5
colunas espalhadas pela sala (note-se, isto é antes do dolby sorround! Corre o
ano de 1988…).
Sempre a viver no medo de ser descoberta, quando podia lá ia eu para a
agulha do gira discos. Ramones, Tina Turner, Queen, Doors, e tantos outros,
pela minha mão trémula de criança ainda em desenvolvimento, a tentar a todo o
custo assentar a agulha no início daquela faixa do LP (O LP era 45 ou 33
rotações? Já não me lembro!!!). E cantar. Sozinha. E ouvir, os agudos e os
graves, e mexer nas vias e ver o que acontecia. E a tentar distinguir a qualidade
de som.
O dia chegou em que ele topou. Alguma coisa ficou mal arrumada. “Tu andaste
lá em cima?”. Nunca fui criança de grande medo, mas lembro-me de o ter, contudo
respondi assertiva e calmamente qualquer coisa do tipo “só estive a ver umas
coisas”. “Eu disse-te que não podes, podes estragar”.
Lembro-me, passado algum
tempo, de ele começar a confiar em mim e ver que eu gostava daquilo. E começar
a explicar-me coisas. E dizer-me para eu ver que agora é que se via a diferença
de som… “ Vês, vês a diferença, isto agora é outra coisa!”, dizia emocionado.
Eu não chegava à tanto. A música parecia à mesma e o meu ouvido não distinguia,
mas olhava para ele maravilhada e dizia que sim. Para o agradar. Para o ver
radiante com o que ele havia conseguido fazer, fosse o que fosse.
Estar na presença do meu avô é e sempre será uma sensação de prazer enorme
para mim. Com ele sente-se que se pode estar. Não somos julgados (a não pelas
pequenas coisas típicas dos “generation gap”).
Recebemos sempre um sorriso. Recebemos sempre um voto de confiança em como
somos capazes de fazer algo. Ele nunca diz “tu não és capaz” ou “isso não vais
conseguir ”. Ele diz-nos “Ora mostra lá como fazes isso!”, mesmo que seja na
expectativa de nos ver não conseguir!
O meu avô, até se reformar, teve uma profissão incrível: projecionista de
cinema. O Cinema tornou-se a grande paixão da minha vida. Cresci com direito a
um banquinho no fundo da sala, pequeno, escondido e desconfortável. Ele chegava
a casa e anunciava as estreias, informando a família do tipo de filme que era e
se era adequado a irmos todos ver ou só alguns.
Ir vê-lo trabalhar era um fascínio para mim. A atenção ao detalhe, o
cuidado ao transportar as bobines com os filmes, a realização dos cortes na
pelicula. Preparar a bobine para o intervalo. O chão cheio de restinhos de
cantinhos de plástico ou frames eliminados. Aquela máquina gigante, cinzenta e
fria, nas mãos do meu avô ganhava toda a vida do mundo.
O som da película a começar a rodar. A voz do meu avô a ser projetada pela
sala dentro …”As imagens que estão a ser projetadas, pertencem ao filme que
será exibido nesta sala de cinema a partir do próximo dia 20 de Dezembro, às
21h45 e na sessão da meia-noite”. Guardo ainda hoje um poster do ALLIENS I, e
tantos outros, em rolinho, relembrando a emoção de ele trazer um poster só para
mim.
A cadeira, de napa castanha, gasta pelo tempo, onde ele se sentava e
visualizava o decorrer do filme. O meu avô teve uma profissão de sonho para
mim. Quando os cinemas começaram a melhorar em termos de tecnologia, ele tinha
de encontrar uma solução para competir e inventou todo um sistema surround, à
volta da sala toda (sem ser um sistema pré-comprado).
Com o meu avô Araújo, tudo é assim: tudo tem salvação. As máquinas vivem o
tempo que merecem. Elas são arranjadas, salvas, ressuscitadas as vezes que
forem precisas. Nada vai para o lixo. Nada se troca ou se manda fora porque
está fora de moda ou porque não se gosta da cor ou porque saiu um novo modelo.
As “coisas” nascem para persistir até ao fim da sua existência. Com o meu
avô tudo pode ser salvo. Tudo (e todos) tem DIREITO a que se tente. A que se dê
o nosso melhor. Muitas pessoas me apelidam de “maria das velharias”. Tenho
velharias porque elas têm valor, têm histórias em si, foram salvas. Eu permito
que elas continuem a existir e que não sejam vulgar e friamente substituídas
por outras sem o único motivo válido: chegarem ao seu fim natural.
Aqui, ao meu lado, está uma Televisão Samsung que o meu avô me ofereceu.
Deve ter 30 ou 40 anos. Sim, já existiam televisões super avançadas mas eu vi
sic e tvi nesta TV. Cujos botões fazem estalidos, cujo caixilho aparenta
madeira e cuja sintonia é feita com um pauzinho num buraquinho e vamos rodando
e rodando até apanhar. Só aqui ainda posso ver a estática…supostamente (segundo
algumas teorias) resquícios do da energia do big bang. Será UHF ou é na outra
banda? A TV anda a falhar? Vamos buscar um secador de cabelo porque é a
humidade. Os raios catódicos. Sim, com ele aprendi que tudo se resolve. Que
somos capazes de resolver tudo, de sarar tudo.
O meu avô coleciona livros. Em criança aprendi o valor das Enciclopédias.
As seleções do Reader’s Digest e o círculo de leitores. O meu avô não era
grande leitor, mas amava os livros. E eu amo-os também. Talvez sejemos os
elementos da família que amam mais os livros. Aquelas edições douradas,
pesadas, às quais eu detestava limpar o pó ao sábado de manhã! Ir à
enciclopédia procurar uma informação qualquer tornou-se um hábito rapidamente.
O Aquilino Ribeiro, o Vitor Hugo e outros, não me puxaram. Mas quando
encontrei Garret, a minha vida mudou. Andava pela casa com as Viagens na minha
Terra, as Flores sem fruto, as Folhas Caídas. O ultra-romantismo
entranhou-se-me.
O meu avô Araújo, o meu único avô, ensinou-me a andar de bicicleta.
Não me lembro que algum dia ter ouvido uma crítica acérrima sobre algo que
eu vesti, algo que eu disse, algo que eu defendi.
O meu avô também discute, mas sabe-se que ele discorda quando levanta as
sobrancelhas. Porque ele escolhe as lutas. Porque nunca foi, nem em jovem nem
mais velho, dado a picuices, de criticar os outros por tudo e por nada. Não me
lembro de ser criticada por ele por nenhuma opção de vida que eu tenha tomado.
Encolhia os ombros e deixava-nos ir.
Talvez África tenha ficado um pouquinho nele. Anos depois África
entranhou-se em mim também. A África que nos abre a mente e o espírito e nada
volta a ser igual. África que nos mostra que a vida é curta e vã e não vale a
pena andar com minudências.
O meu avô, o Justo, é um homem integral, um veterano de guerra, de quem eu
acho que herdei a força, a resiliência, a capacidade de achar que tudo pode ser
resolvido e de que todas as coisas e todas as pessoas têm direito a todas as
oportunidades, a todas as tentativas, até esgotarmos, até nada mais haver para
reutilizar, repensar.
O cérebro do meu avô funciona sempre “fora do quadrado”. Quando menos se
espera, ele “engendra” uma solução inédita. Junta peças daqui e dali. OBSERVA as
coisas sem os seus significados usualmente associados. Retiras-lhe tudo e pensa
neutro, pensa sem “pré-conceitos”. E descobre outro caminho. Uma outra via.
Até dizermos por fim, “já não tem arranjo”. Sei que ele o disse,
eventualmente, mas ouvi muito poucas vezes o meu avô a dizer “já não tem
arranjo”.
Sei que ele tem razão. Tentar de tudo. Pensar fora do quadrado. E só dizer
“Já não tem arranjo” quando já se esgotou tudo. Ele é e sempre será o último a
dizer “já não tem arranjo”
Até lá, tudo tem arranjo.