Friday, April 01, 2016

O meu avô: “Araújo, o Justo”


Para muitas pessoas, um avô é um avô: o pai do pai ou da mãe. Para mim, o meu avô Araújo é o pai que eu não tive, o único avô que algum dia tive e é a minha figura de 
vinculação masculina.

O meu avô Araújo é um contador de histórias. Seja qual for o tema, há sempre uma história para contar. Dele herdei um pouco desta paixão por contar histórias. A paixão por juntar letras e palavras, a pouco e pouco, e contorcê-las até elas expressarem o que queremos, até elas terem a força e densidade para penetrarem o outro. Esta é a forma principal de um escritor expressar amor.

O meu avô Araújo é o único homem que algum dia conheci que está sempre pronto a dançar. O Passo Doble, o Samba o uma pimbalhada qualquer. Um jeito corporal muito próprio, de quem jinga a anca sem mexer o tronco superior. Um sorriso a acompanhar toda a dança.

O meu avô chama-se Manuel Justo Araújo e, é uma das pessoas mais justas que conheço. Um dos meus sonhos sempre foi ter o apelido JUSTO. Adoro esse apelido. Adoro a cadência, a melodia e o profundo significado dessa palavra.

O meu avô tem um verde calma nos olhos mas quando se espelham em nós, percebemos a energia que lá vai por dentro. Uma energia sempre pronta a fazer tudo por todos.

O meu avô conta piadas sobre tudo. Ri de tudo. Vive com tudo.
Hoje sou quem sou, muito devido a ele nunca me ter tratado como “uma menininha”. A oficina tinha sempre a porta aberta. Na sua geração, eram comuns os preconceitos de género e às pessoas que, por perfeito acaso do destino, nasciam com vaginas, eram vedadas muitas atividades.

A garagem, a oficina, o seu local de trabalho estiveram sempre de portas abertas para mim. Eu entrava e fazia uma pergunta. E cedo soube o que era uma grosa, um formão. Soube soldar. Soube o que era uma jante, um compressor, como funciona a embraiagem ou tudo o mais que, como é óbvio tinha sempre uma breve (ou não tão breve!) história por detrás.

Um dia trouxe um banco feito na escola, por mim. A disciplina era “madeiras”. E disse-lhe que queria pintá-lo (infelizmente, não há milagres, e como alguém havia decidido que o quarto ia ser cor de rosa, logicamente, o banco teria de ser da mesma cor!). “OK, vamos pintar”. Não há dúvidas. Em pouco tempo estávamos a pintar o banco. 

Na altura, ele não tinha pistola (depois aprendi a pintar à pistola) e pintamos à mão. “Tens de “puxar” a tinta, assim…vês…que é para não ficar os risquinhos…isso…movimentos fundos…”. Esse banco está aqui ao meu lado. À espera de tempo e espaço para usar o decapante e mudá-lo de cor.

O meu avô, um dia, trouxe umas aparelhagens novas para casa e disse para eu não mexer. Só podia estar lá quando ele também estivesse. A coleção de Vinis era demasiado tentadora. Observei atentamente tudo o que ele fazia e depois, à sucapa, ia para lá. O Deck de cassetes, um amplificador topo de gama, 4 ou 5 colunas espalhadas pela sala (note-se, isto é antes do dolby sorround! Corre o ano de 1988…).

Sempre a viver no medo de ser descoberta, quando podia lá ia eu para a agulha do gira discos. Ramones, Tina Turner, Queen, Doors, e tantos outros, pela minha mão trémula de criança ainda em desenvolvimento, a tentar a todo o custo assentar a agulha no início daquela faixa do LP (O LP era 45 ou 33 rotações? Já não me lembro!!!). E cantar. Sozinha. E ouvir, os agudos e os graves, e mexer nas vias e ver o que acontecia. E a tentar distinguir a qualidade de som.

O dia chegou em que ele topou. Alguma coisa ficou mal arrumada. “Tu andaste lá em cima?”. Nunca fui criança de grande medo, mas lembro-me de o ter, contudo respondi assertiva e calmamente qualquer coisa do tipo “só estive a ver umas coisas”. “Eu disse-te que não podes, podes estragar”. 

Lembro-me, passado algum tempo, de ele começar a confiar em mim e ver que eu gostava daquilo. E começar a explicar-me coisas. E dizer-me para eu ver que agora é que se via a diferença de som… “ Vês, vês a diferença, isto agora é outra coisa!”, dizia emocionado. Eu não chegava à tanto. A música parecia à mesma e o meu ouvido não distinguia, mas olhava para ele maravilhada e dizia que sim. Para o agradar. Para o ver radiante com o que ele havia conseguido fazer, fosse o que fosse.

Estar na presença do meu avô é e sempre será uma sensação de prazer enorme para mim. Com ele sente-se que se pode estar. Não somos julgados (a não pelas pequenas coisas típicas dos “generation gap”).

Recebemos sempre um sorriso. Recebemos sempre um voto de confiança em como somos capazes de fazer algo. Ele nunca diz “tu não és capaz” ou “isso não vais conseguir ”. Ele diz-nos “Ora mostra lá como fazes isso!”, mesmo que seja na expectativa de nos ver não conseguir!

O meu avô, até se reformar, teve uma profissão incrível: projecionista de cinema. O Cinema tornou-se a grande paixão da minha vida. Cresci com direito a um banquinho no fundo da sala, pequeno, escondido e desconfortável. Ele chegava a casa e anunciava as estreias, informando a família do tipo de filme que era e se era adequado a irmos todos ver ou só alguns.

Ir vê-lo trabalhar era um fascínio para mim. A atenção ao detalhe, o cuidado ao transportar as bobines com os filmes, a realização dos cortes na pelicula. Preparar a bobine para o intervalo. O chão cheio de restinhos de cantinhos de plástico ou frames eliminados. Aquela máquina gigante, cinzenta e fria, nas mãos do meu avô ganhava toda a vida do mundo.

O som da película a começar a rodar. A voz do meu avô a ser projetada pela sala dentro …”As imagens que estão a ser projetadas, pertencem ao filme que será exibido nesta sala de cinema a partir do próximo dia 20 de Dezembro, às 21h45 e na sessão da meia-noite”. Guardo ainda hoje um poster do ALLIENS I, e tantos outros, em rolinho, relembrando a emoção de ele trazer um poster só para mim.

A cadeira, de napa castanha, gasta pelo tempo, onde ele se sentava e visualizava o decorrer do filme. O meu avô teve uma profissão de sonho para mim. Quando os cinemas começaram a melhorar em termos de tecnologia, ele tinha de encontrar uma solução para competir e inventou todo um sistema surround, à volta da sala toda (sem ser um sistema pré-comprado).

Com o meu avô Araújo, tudo é assim: tudo tem salvação. As máquinas vivem o tempo que merecem. Elas são arranjadas, salvas, ressuscitadas as vezes que forem precisas. Nada vai para o lixo. Nada se troca ou se manda fora porque está fora de moda ou porque não se gosta da cor ou porque saiu um novo modelo.

As “coisas” nascem para persistir até ao fim da sua existência. Com o meu avô tudo pode ser salvo. Tudo (e todos) tem DIREITO a que se tente. A que se dê o nosso melhor. Muitas pessoas me apelidam de “maria das velharias”. Tenho velharias porque elas têm valor, têm histórias em si, foram salvas. Eu permito que elas continuem a existir e que não sejam vulgar e friamente substituídas por outras sem o único motivo válido: chegarem ao seu fim natural.

Aqui, ao meu lado, está uma Televisão Samsung que o meu avô me ofereceu. Deve ter 30 ou 40 anos. Sim, já existiam televisões super avançadas mas eu vi sic e tvi nesta TV. Cujos botões fazem estalidos, cujo caixilho aparenta madeira e cuja sintonia é feita com um pauzinho num buraquinho e vamos rodando e rodando até apanhar. Só aqui ainda posso ver a estática…supostamente (segundo algumas teorias) resquícios do da energia do big bang. Será UHF ou é na outra banda? A TV anda a falhar? Vamos buscar um secador de cabelo porque é a humidade. Os raios catódicos. Sim, com ele aprendi que tudo se resolve. Que somos capazes de resolver tudo, de sarar tudo.

O meu avô coleciona livros. Em criança aprendi o valor das Enciclopédias. As seleções do Reader’s Digest e o círculo de leitores. O meu avô não era grande leitor, mas amava os livros. E eu amo-os também. Talvez sejemos os elementos da família que amam mais os livros. Aquelas edições douradas, pesadas, às quais eu detestava limpar o pó ao sábado de manhã! Ir à enciclopédia procurar uma informação qualquer tornou-se um hábito rapidamente.

O Aquilino Ribeiro, o Vitor Hugo e outros, não me puxaram. Mas quando encontrei Garret, a minha vida mudou. Andava pela casa com as Viagens na minha Terra, as Flores sem fruto, as Folhas Caídas. O ultra-romantismo entranhou-se-me.

O meu avô Araújo, o meu único avô, ensinou-me a andar de bicicleta.
Não me lembro que algum dia ter ouvido uma crítica acérrima sobre algo que eu vesti, algo que eu disse, algo que eu defendi.

O meu avô também discute, mas sabe-se que ele discorda quando levanta as sobrancelhas. Porque ele escolhe as lutas. Porque nunca foi, nem em jovem nem mais velho, dado a picuices, de criticar os outros por tudo e por nada. Não me lembro de ser criticada por ele por nenhuma opção de vida que eu tenha tomado. Encolhia os ombros e deixava-nos ir.

Talvez África tenha ficado um pouquinho nele. Anos depois África entranhou-se em mim também. A África que nos abre a mente e o espírito e nada volta a ser igual. África que nos mostra que a vida é curta e vã e não vale a pena andar com minudências.

O meu avô, o Justo, é um homem integral, um veterano de guerra, de quem eu acho que herdei a força, a resiliência, a capacidade de achar que tudo pode ser resolvido e de que todas as coisas e todas as pessoas têm direito a todas as oportunidades, a todas as tentativas, até esgotarmos, até nada mais haver para reutilizar, repensar.

O cérebro do meu avô funciona sempre “fora do quadrado”. Quando menos se espera, ele “engendra” uma solução inédita. Junta peças daqui e dali. OBSERVA as coisas sem os seus significados usualmente associados. Retiras-lhe tudo e pensa neutro, pensa sem “pré-conceitos”. E descobre outro caminho. Uma outra via.

Até dizermos por fim, “já não tem arranjo”. Sei que ele o disse, eventualmente, mas ouvi muito poucas vezes o meu avô a dizer “já não tem arranjo”.

Sei que ele tem razão. Tentar de tudo. Pensar fora do quadrado. E só dizer “Já não tem arranjo” quando já se esgotou tudo. Ele é e sempre será o último a dizer “já não tem arranjo”

Até lá, tudo tem arranjo.